O regime espetacular integrado: estado de exceção permanente

Publié le par la Rédaction


No dia 11 de novembro de 2008, a Polícia antiterrorista do Estado francês invadiu uma fazenda em Tarnac (França), na qual viviam, numa experiência comunitária, 9 ativistas anticapitalistas, dentre eles alguns ligados à revista Tiqqun, que foram presos, acusados logo em seguida de «terroristas». As manobras políticas, midiáticas e judiciárias que se seguiram para «provar» o que a polícia do Estado francês queria «provar» demonstram o aprimoramento das técnicas de governo do que Debord chamava de espetacular integrado, conceito de algum modo inspirador das reflexões de Giorgio Agamben sobre o predomínio atual do estado de exceção permanente como paradigma das técnicas de governo.

Segundo Debord, o espetacular integrado funde as características totalitárias do antigo espetáculo concentrado com as características das democracias espetaculares difusas. Assim como a União Soviética stalinista e a Alemanha nazista constituíram a experiência mais radical do espetáculo concentrado, e os Estados Unidos a do espetáculo difuso, a França e a Itália foram o laboratório das novas técnicas de governo espetaculares integradas, na seqüência do combate e da vitória do Estado contra a contestaçlão social que se seguiu ao movimento de ocupações de fábricas em maio de 68 na França, contestação que, nos anos seguintes, espalhou-se a diversos países, dentre eles, e com destaque, a Itália.

O fato de que o Estado italiano tenha, com a ajuda do PCI e seus sindicatos, combatido e derrotado violentamente a insurgência revolucionária que se desenvolveu durante toda a década de 70, com mentiras, repressões, prisões arbitrárias, torturas, falsificação de provas e de informações, até chegar ao aperfeiçoamento dessas técnicas com a figura jurídica da «delação premiada» e dos «arrependidos», tudo isso foi a experiência que consolidou um método de governo que, depois, se tornou modelo para outras democracias espetaculares. A democracia espetacular de massas (o antigo espetacular difuso) integrou a si, como método normal de governo, as formas totalitárias (próprias ao espetacular concentrado).

A França agora, como já antes no caso da extradição de Cesare Battisti, retoma esse método contra os/as companheiros/as de Tarnac. Na verdade, a retomada aberta e generalizada desses métodos, após os até hoje não esclarecidos ataques às torres do World Trade Center em 11 de setembro de 2001, visou ao combate contra os movimentos de contestação anticapitalista, que, desde o final dos anos 90 (principalmente, a partir de Seattle), se espalharam e radicalizaram um pouco por todo canto. As repressões ao movimento anticapitalista nos EUA, com prisões arbitrárias (para «esclarecimento» e «investigação») de ativistas e contestadores e escutas telefônicas e acompanhamentos de correios eletrônicos, tiveram antes sua expressão acabada, mas não finalizada, na violenta repressão às manifestações anticapitalistas em julho de 2001 em Gênova. Nessa ocasião toda liberdade de manifestação e expressão foi suspensa, com a prisão de centenas de pessoas, que foram submetidas a mal-tratos e espancamentos, com a invasão de sedes de comitês, de organizações autônomas, do CMI etc., terminando com a assassinato do companheiro Giuliano, em plena rua. No México, a criminalização contra os companheiros de Oaxaca e Atenco; na França, o processo e condenação contra o companheiro Romain Dunand, a decisão judicial de extradição de Cesare Battisti, agora as prisões e processos contra os companheiros de Tarnac; na Itália a condenação dos companheiros que foram presos e processados pela participação nas manifestações de julho de 2001… O espetacular integrado demonstra-se cada vez mais afim ao seu conceito.

Publico abaixo uma série de quatro textos sobre o caso dos acusados de 11 de novembro, na França. Primeiro, um manifesto escrito e assinado por Giorgio Agamben; em seguida, um outro manifesto assinado por vários intelectuais europeus; e, por fim, dois pequenos panfletos do Comitê de Solidariedade aos acusados de 11 de novembro. A tradução desses textos é dos/as companheiros/as do Comitê Vandalista de Segurança Pública
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Poiesis trabalho & cultura, 7 de junho 2009.


Terrorismo ou tragicomédia

Ao amanhecer do 11 de novembro, 150 policiais, dos quais a maior parte pertencia às brigadas antiterroristas, cercaram um vilarejo de 350 habitantes sob o planalto de Millevaches antes de penetrar uma fazenda para conter 9 jovens (que teriam retomado a mercearia local e tentado retomar a vida cultural do vilarejo). Quatro dias depois, as 9 pessoas interpeladas foram deferidas diante um julgamento antiterrorista e «acusadas de associação de malfeitores com finalidade terrorista». Os jornais relatam que a ministra do Interior e o chefe de Estado «felicitaram a polícia e a germanderie por sua eficácia». Tudo está em ordem na aparência. Mas tentemos examinar de mais perto os fatos e delimitar as razões e os resultados dessa «eficácia».

Primeiro, as razões: os jovens que foram interpelados «seriam seguidos pela polícia em razão de seu pertencimento à ultra-esquerda e ao movimento anarco-autonômo». Como o precisa o entorno da ministra do Interior, «eles têm discursos muito radicais e mantêm relações com grupos estrangeiros». Mas tem mais: alguns dos interpelados «participariam de maneira regular das manifestações políticas», e, por exemplo, «das manifestações contra o Arquivo Edvige [
Em linhas gerais, o worelliano Arquivo Edvige permite ao Ministério do Interior da França arquivar toda informação sobre os cidadãos maiores de 13 anos a respeito de suas atividades políticas, filosóficas, sociais, etc. (Nota dos tradutores)] e contra o reforço das medidas sobre a imigração». Um pertencimento político (é o único sentido possível para monstruosidades lingüísticas como «movimento anarco-autônomo»), o exercício ativo das liberdades políticas, a propriedade do discurso radical são suficientes, portanto, para pôr em andamento a Subdireção antiterrorista da polícia (Sdat) e a Direção Central da Informação Interior (DCRI). Ora, quem possui um mínimo de consciência política não pode senão partilhar a inquietação destes jovens face às degradações da democracia que provocam o Arquivo Edvige, os dispositivos biométricos e o endurecimento das regras sobre a imigração.

Quanto aos resultados, esperava-se que os investigadores encontrassem na fazenda de Millevaches armas, explosivos, e coquetéis Molotov. Pelo contrário. Os policiais da Sdat caíram sobre «documentos precisando os horários de passagem dos trens, comuna por comuna, com o horário de partida e de chegada nas estações». Em bom francês: um horário da SNCF. Mas eles também resgataram um «material de escalada». Em bom francês: uma escala, como aquelas que se encontram em qualquer casa de campo.

E, portanto, tempo de vir aí às pessoas interpeladas e, sobretudo, ao chefe pressuposto deste bando terrorista, «um líder de 33 anos saído de um meio próspero e parisiense, vivendo graças aos subsídios de seus pais». Trata-se de Julien Coupat, um jovem filósofo que animou há pouco, com alguns de seus amigos, Tiqqun, uma revista responsável por análises políticas certamente discutíveis, mas que conta ainda hoje entre as mais inteligentes deste período. Conheci Julien Coupat nesta época e lhe guardo, do ponto de vista intelectual, uma estima durável.

Passemos, portanto, ao exame do único fato concreto de toda esta história. A atividade dos interpelados estaria ligada com os atos de hostilidade contra a SNCF que causaram em 8 de novembro o atraso de certos TGV na linha Paris-Lille. Estes dispositivos, se se crê nas declarações da polícia e dos agentes da SNCF, eles mesmos não podem em nenhum caso provocar prejuízos às pessoas: eles podem, no máximo, impedindo a alimentação dos pantógrafos dos trens, causar o atraso destes. Na Itália, os trens atrasam muito frequentemente, mas ninguém ainda sonhou em acusar de terrorismo a Sociedade Nacional das Estradas de Ferro. Trata-se de delitos menores, ainda que ninguém se proponha a garanti-los. Em 13 de novembro, um comunicado da polícia afirmava com prudência que há talvez «autores das degradações entre os detentos provisorios, mas que não é possível imputar uma ação a um ou outro entre eles».

A única conclusão possível deste tenebroso caso é que aqueles que se engajam ativamente hoje contra a maneira (de resto discutível) pela qual se gestiona os problemas sociais e econômicos são considerados ipso facto como terroristas em potencial, mesmo quando nenhum ato justificaria esta acusação. É preciso ter a coragem de dizer com clareza que hoje, em numerosos países europeus (em particular na França e na Itália), se tem introduzido leis e medidas policias que se teriam anteriormente julgadas bárbaras e antidemocráticas e que não deixam nada a desejar àquelas em vigor na Itália durante o fascismo. Uma dessas medidas é aquela que autoriza a detenção por uma duração de 96 de um grupo de jovens imprudentes, talvez, mas aos quais «não é possível se atribuir uma ação». Outra igualmente grave é a adoção de leis que introduzem delitos de associação cuja formulação é deixada intencionalmente na vaga e que permitem classificar como «com fins» ou «com vocação terrorista» atos políticos que não se teriam jamais considerado até aí como destinados a produzir terror.

Giorgio Agamben. Libération, 19/11/08.


Petição de apoio aos acusados do 11 de novembro

Uma recente operação, largamente mediatizada, permitiu aprisionar e acusar nove pessoas pondo em prática a legislação antiterrorista. Esta operação já mudou de natureza: uma vez estabelecida a inconsistência da acusação de sabotagem das catenárias [Dispositivos de apoio aos fios condutores de uma via férrea - N.T.], o caso tomou um rumo claramente político. Para o Procurador da República, «o objetivo de sua empresa é bem o de atingir as instituições do Estado, e de chegar pela violência — eu digo pela violência e não pela contestação que é permitida — a perturbar a ordem política, econômica e social».

O alvo desta operação é bem mais largo que o grupo de pessoas acusadas, contra as quais não existe nenhuma prova material, nem mesmo nada de preciso que possa acusá-las. A acusação por «associação de malfeitores com finalidade terrorista» é mais que vaga: o que é exatamente uma associação e como entender esse «com finalidade» senão como uma criminalização da intenção? Quanto à qualificação de terrorista, a definição em vigor é tão larga que se pode aplicá-la a qualquer um — e que possuir tal ou tal texto, ir à tal ou tal manifestação é o suficiente para cair no golpe desta legislação de exceção.

As pessoas acusadas não foram escolhidas ao acaso, mas porque elas levam uma existência política. Eles e elas participaram de manifestações — ultimamente aquela de Vichy, onde se realizou a pouca honrosa conferência européia sobre a imigração. Eles refletem, lêem livros, vivem juntos num vilarejo longínquo. Falou-se de clandestinidade: eles abriram uma mercearia, todo mundo os conhece na região, onde um comitê de apoio organizou-se a partir da detenção deles. O que eles buscavam não é nem o anonimato, nem o refúgio, mas bem o contrário: uma outra relação que aquela, anônima, da metrópole. Finalmente, a ausência de provas ela mesma torna-se uma prova: a recusa dos acusados em se denunciarem uns aos outros durante a detenção provisória é apresentada como um novo indício de seu fundo terrorista.

Na realidade, para nós este caso é um teste. Até que ponto iremos aceitar que o antiterrorismo permita a qualquer momento acusar qualquer um? Onde se situa o limite da liberdade de expressão? As leis de exceção adotadas sob pretexto de terrorismo e segurança são elas compatíveis em longo prazo com a democracia? Estamos prontos a ver a polícia e a justiça negociarem a guinada em direção a uma nova ordem? A resposta a estas questões está a nosso cargo, primeiramente exigindo o fim das perseguições e a liberação imediata daquelas e daqueles que foram acusadas por exemplo.

Primeiros signatários: Giorgio Agamben, filósofo; Alain Badiou, filósofo; Jean-Christophe Bailly, escritor; Anne-Sophie Barthez, professora de direito; Miguel Benasayag, escritor; Daniel Bensaïd, filósofo; Luc Boltanski, sociólogo; Judith Butler, filósofa; Pascale Casanova, crítico literário; François Cusset, filósofo; Christine Delphy, socióloga; Isabelle Garo, filósofa; François Gèze, edições La Découverte; Jean-Marie Gleize, professor de Literatura; Éric Hazan, edições La Fabrique; Rémy Hernu, professor de direito; Hugues Jallon, edições La Découverte; Stathis Kouvelakis, filósofo; Nicolas Klotz, realizador; Frédéric Lordon, economista; Jean-Luc Nancy, filósofo; Bernard Noël, poeta; Dominique Noguez, escritora; Yves Pagès, edições Verticales; Karine Parrot, professor de direito; Jacques Rancière, filósofo; Jean-Jacques Rosat, filósofo; Carlo Santulli, professor de direito; Rémy Toulouse, edições Les Prairies ordinaires; Enzo Traverso, historiador; Jérôme Vidal, edições Amsterdam; Slavoj Zizek, filósofo.


Libertação de Julien. Tudo continua

Conseguimos. Os jornalistas anunciam a liberação de Julien Coupat. Insistindo sobre a clemência do tribunal, que dela não irá se opor desta vez. Que declara que a detenção não se justifica mais. Ficção de um antiterrorismo razoável, justo, moderado.

Nos artigos da imprensa logo se lembra que é aniversario de Julien. Como se se tratasse de um presente. Seria necessário, portanto, estar feliz, estourar um champagne, comemorar a vitória. É magnífico: mantém-se a todo custo contra alguém em detenção durante seis meses e porque, de repente, sem nenhuma explicação, se o libera, seria preciso estar contente, agradecer a justiça por ser tão justa e os juízes por serem tão clementes.

Não, o sentimento predominante é sempre e ainda o de cólera. Pelo cárcere de Julien e de outros. Pelas apreensões em plena rua que se permitem ainda. Pelas detenções provisórias de 96 horas, tornadas sistemáticas. Pelo imbecil Jean-Marc, simples policial da SDAT. Portanto, não se trata de parar aí.

Com o caso Tarnac, o poder tentou um golpe: utilizar de seus dispositivos de exceção, policiais e jurídicos, sem escrúpulos, ao mesmo tempo comunicando-o ao maior número de pessoas. O que se tentou foi a banalização dos dispositivos antiterroristas. No atual estado de coisas pode-se dizer que ele não conseguiu. Mas ele ainda não fracassou. O desafio, para além do que este caso encerre de uma vez por todas, é de «melar» por muito tempo as medidas antiterroristas.

Outra coisa que foi revelada por este caso é a existência de formas de contestação difusas, de uma política radical que se move fora dos partidos e dos sindicatos, e sua tentativa de cooptação sob o termo «anarco-autônomo» ou «extrema-esquerda». O que está na ordem do dia, rapidamente, é a existência de uma juventude que deseja o fim desta sociedade. E isto tampouco se deterá. Com a liberação de Julien tudo continua. Os comitês de apoio devem anunciar novas iniciativas muito em breve.

Comunicado de 27 de maio do Comitê de Apoio
aos inculpados do 11 de novembro.


Um buquê de flores para Michèle Alliot-Marie [
Atual ministra do Interior da França (cargo já ocupado por Sarkozy no governo Jacques Chirac). (Nota dos tradutores)]

Não, não estamos aliviados. Não, a liberação de Julien não é uma «vitória». No melhor dos casos é uma afronta a esses cínicos que nos atacaram. Para nós, é apenas uma etapa. Em direção à impunidade, para todos e para tudo. Não enviaremos um buquê de flores ao Ministério Público. Sua violência vai continuar, contra nós, nossos amigos, contra outros. Os controles judiciais, as amizades proibidas, as vigilâncias, as detençoes provisorias de 96 horas. O que se manifesta nesse affaire é a determinação, a determinação patética de uma ordem senil disposta a tudo para aniquilar o que a ela resiste. Tudo está por começar para eles, como para todos nós. Portanto, continuamos. Nossa defesa é tão preventiva quanto ofensiva.

Foi questão de deslocar o enfrentamento do plano judiciário ao plano político. Isso provocou alguns desentendimentos.

Anunciamos, portanto a resistência, uma grande manifestação dia 21 de junho (dia da festa da música) às 15h no Halles em Paris. Convidamos todas as pessoas, todos os grupos, todos os trabalhadores, todos os manifestantes submetidos à violência brutal e judiciária da polícia e de seus políticos. Convocamos todas aquelas e aqueles que não suportam essa ordem do mundo, todas aquelas e aqueles que se organizam para sobreviver e a ele reagem. Convidamos todas aquelas e aqueles para quem é tempo, enfim, de se encontrar.

Por Julien, todos os outros e contra tudo.

Domingo, 21 de junho – 15h – Fontaine des Innocents – Paris.

Comunicado de 28 de maio do Comitê de Apoio
aos inculpados do 11 de novembro.
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